segunda-feira, outubro 21, 2013

Aventura Matutina

É uma segunda-feira. Deixou a manhã livre, ainda não tinha descansado tudo o que deveria durante o final de semana, sendo mais do que justa a prorrogação. O tempo era curto, mas acelerar o ritmo não parecia possível e menos ainda preocupar-se com isso. Lavou o rosto, penteou os cabelos, vestiu uma roupa leve e azul para combinar com o dia de sol. Não havia mais tempo para o almoço, tirou um café da máquina e junto com sacolas de roupas e objetos que seriam úteis ao longo do dia. Preparou alguns mantimentos industrializados que prometiam a combinação perfeita entre proteínas e carboidratos por  porção para uma vida leve e saudável. Saúde desidratada. Calma e atenta, pouco tempo, nenhuma pressa. Aperta o botão para destravar as portas do carro, nada acontece. Que mania essa de sempre esquecer as portas abertas. Acomoda as sacolas e garrafas no banco do passageiro, se coloca no lugar do motorista, gira a chave e nada. Nenhuma luz, nenhuma resposta além de um leve engasgo do motor, que logo cessa. Tenta usar o telefone, mas não existe sinal na garagem. Sobe a pé a rampa para carros e sente um carinho do vento frio. O dia está memorável de tão perfeito. Precisa acelerar o ritmo. O tempo que era curto, mas justo, se tornou insuficiente. Liga para o trabalho para avisar sobre o atraso. A calma já foi substituída por um certo estado de alerta. O dia de repente parou de caber nele mesmo. Recebe a notícia, o trabalho, que também é um ensaio, acabara de ser cancelado. Além do vento, percebe o azul muito claro do céu pincelado por nuvens brancas quase inexistentes de tão rarefeitas. Muitas realidades sobrepostas antes mesmo que pudessem ser percebidas. Desceu a rampa em direção ao carro, juntou as sacolas e garrafas e apertou o botão do elevador. Uma tarde, uma vida inteira, livre pela frente e não fazia a menor ideia sobre qual seria o próximo passo. Não tinha certeza, mas talvez fosse esse o outro lado da felicidade. Talvez fosse apenas o nada.

segunda-feira, fevereiro 18, 2013

28 e 1/2




De repente levantei da cama, liguei a torneira do banheiro, me olhei no espelho e levei um susto. Algo terrivelmente inaceitável havia acontecido. Aparecera bem ali entre a  bochecha e o nariz um maldito bigode chinês!

Quando será que ele tinha começado a aparecer? Será que eu estive assim tão distraída  que simplesmente ignorei um evento de tão grande porte acontecendo ali no meio da minha cara?

Pensei o impensável até então. Em paralisar a cara, o tempo, a vida. Em correr para a primeira clínica cheia de agulhas, frequências e promessas simples para a eterna felicidade. Onde a simples ideia de juventude pode ser o resumo da felicidade em sí.

Fiquei assim, entregue aos pensamentos mais absurdos que existem dentro da gente, que brotavam na minha cabeça como gremlins excitados  depois de um banho d’água, enquanto puxava e amassava as minhas bochechas como que tentando acordar de um pesadelo que sabe-se sonhado.

E como em um raio me veio um sorriso. Talvez pelo medo de agulhas ou pela angústia do tempo parado, ponderei um pouco. Se aquela pequena marca fosse um sinal do que tenho vivido, talvez pudesse ser motivo de orgulho e não de se deixar pasmado.

Uma lembrança para todo o tempo de todas as coisas preciosas que aprendi ontem a noite, e na noite antes da de ontem e na outra mais distante ainda.  A certeza de que o medo de não saber o que querer, não fazia mais sentido, porque sem o medo tudo se pode fazer.

A certeza de que só sendo eu mesma, sem querer ser mais ninguém ou menos alguém era a única maneira de ser. E sendo assim, tudo o que me restava era juntar  as minhas dúvidas, defeitos, rugas e angústias como um tesouro só meu. Como se sem eles eu jamais deixaria de ser triste, pois não me reconheceria.

Pensei que as angústias em relação ao futuro e os grandes passos ainda distantes que me fiz prometer dar eram boas, desde que olhadas de longe e mantendo a capacidade de,  quando preciso, saber as ignorar.

Hoje, levantei da cama, liguei a torneira do banheiro e levei um susto. No espelho, o  fundo daqueles olhos  me olhava de uma forma muito diferente da de ontem de manhã, e da outra manhã mais distante.  Vi alguém que deixara de se  buscar no passado, para enxergar a imensidão sem forma nem nome de tudo aquilo que ainda está por vir.

sexta-feira, abril 27, 2012

Get me away from here I'm Dying.

Ela abriu os olhos. Era noite e um frio incompreensível a fez despertar de um sono não muito confortável.
Era segunda ou terça-feira de um janeiro insuportavelmente quente e úmido. Percebeu o som do aparelho de ar condicionado, foi recobrando os sentidos e se viu semi-nua, jogada em uma cama ainda fechada. A fraca memória dos últimos momentos de lucidez começavam a trazer algum sentido à aquela cena corriqueira que por alguns instantes pareceu tão absurda.
Lembrou da súbita vontade de entrega que a fez desabar sobre o edredon sem que nem mesmo se desse ao trabalho de completar o ritual da pasta de dente e pijamas. Qualquer tpo de movimentação parecia demasiadamente agressiva mas, precisava tomar uma atitude, sentia frio, muito frio.

Sentou-se com os olhos ainda semi-cerrados, olhou para o pequeno abajour florido em cima do criado mudo. Não acenderia a luz de forma alguma, era mais do que poderia suportar naquele momento.
Continuou a lenta análise sobre o quarto bagunçado, iluminado apenas por uma luz distante vinda da cobertura do prédio da frente e das poucos estrelas naquele céu de cidade grande - Essa noite nascera sem lua. Como são tristes as noites que nascem sem lua. - Olhou na direção da janela e um pouco mais embaixo, sobre o cesto de roupas limpas estava ela, a camisa que tinha emprestado a ele algumas noites antes para que carinhosamente substituisse a sua, encharcada pelo temporal que assolara a cidade naquela outra noite, de sexta ou sábado. Aquele dia ela quis protegê-lo. Foi o dia em que soube que era o fim. Depois daquilo não se veriam de novo, não mais, pelo menos daquela forma.

Pensou em vestir a camisa, não por qualquer pedaço de saudades ou sentimento romântico, pelo contrário, apenas por ser o objeto que acabaria com todo aquele frio com menos esforço. Pegou o pedaço de pano nas mãos e sentiu uma paralização repulsiva. Não queria se proteger com a camisa que agora pertencia a ele. Ela não o queria e menos ainda nada próximo a idéia de algo que fosse deles.
Ficou parada tentando entender como o cheiro ainda impresso no tecido, aquele mesmo cheiro que até tão pouco tempo despertava uma espécie de sensação de aconchego, um carinho diferente, sem fronteiras nem cobranças poderia ter se transformado em algo simplesmente enjoativo. O cheiro era o mesmo. Mas, já não podia reconhecê-lo.
Lembrou de quando mais cedo, ainda durante o dia daquela segunda ou terça de janeiro, um homem atravessou o seu caminho vestindo o mesmo perfume e da maneira curiosa como ela, em um impulso, virou a cabeça e fechou as narinas enojada pela possibilidade de ser invadida por qualquer tipo de lembrança e seguiu.

Agora estava acordada, bem acordada. Foi até a janela da sala fumar um cigarro e ouvir a noite. A rua parecia excessivamente parada. Nenhum som, nem carros nem vento. Estava quente ali fora e isso era um alívio. Pensou muito pouco. Queria ficar alí sentindo esvaziar-se. Sabia que surpreendentemente não choraria ou ficaria triste. Era o fim. E ela alí parada e vazia, contradizendo uma de suas músicas favoritas.

E foi escovar os dentes para voltar, dessa vez sob as cobertas, para a melancolia de um sono inimaginavelmente calmo.

Devaneios Sobre a Neblina

Metade da Parte 15.


Existe sempre um momento em que tudo deve encontrar o seu devido lugar. Pensou Manuela enquanto ainda com as mãos trêmulas jogou um enorme trago de fumaça para dentro dos pulmões. Mas antes mesmo que pudesse terminar de exalar aumentando ainda mais a nuvem cinza que se formava no quarto herméticamente fechado, uma questão voltou a sua mente a inquientando ainda mais. E as fissuras? Por mais que tudo se curasse com o tempo não era possível que tanto sacolejar não deixasse arranhões, machucados, aberturas imensas dentro do seu corpo, transformando aos poucos sua carne em um tecido poroso e rarefeito, frágil como um pedaço de argila. Era assim que ela se sentia naquela noite, como um enorme galho seco jogado esquecido nas margens de uma praia qualquer. No momento em que Rafael mais uma vez bateu a porta enfurecido antes de sumir pelo corredor, ela teve certeza de que nunca mais desejaria-o de novo. Mas, depois de três cigarros e algumas poucas respirações, sua ausência parecia roubar-lhe as forças e ela já precisava dele novamente. Não como uma criança precisa da mãe, mas da sua chupeta, do seu brinquedo favorito, do seu amuleto da sorte sem o qual não se sentiria confiante para enfrentar qualquer tipo de provação. Ele tinha virado seu Deus. E por isso ela precisaria matá-lo. Mas, como seria isso. Ela não se sentia forte o sufieciente nem para abrir as janelas, de onde tiraria coragem para arrancá-lo da sua vida? Ela não se reconhecia mais ao lado dele, mas também já não sabia mais ser qualquer coisa sem a sua presença. Pensou em fugir ou em se atirar pela janela. Mas tudo parecia complicado ou definitivo demais. Desejou abrir a caixa cheia de recordações e fotos da sua vida ao lado de Felipe, queria lembrar desesperadamente como era aquele amor tranquilo que ao mesmo tempo que a sufocava também a acolhia, mas tinha abandonado todos aqueles papeis no dia em que foi embora e junto com eles ficaram todos os vestígios de memória. Ela não era mais aquela, mas também não sabia no que havia se tornado. Abandora a sua vida de sonho para encontrar algo que lhe parecesse real, mas irônicamente tudo aquilo parecia um labirinto tão grande e ela estava exausta sem nem ao menos ter começado a procurar a saída. Desejou o colo da mãe se a sua tivesse algum para oferecer, mas ela sabia que isso não passava de mais um desejo infantil que jamais seria realizado. Procurou lágrimas para salgar a boca, mas estava mais seca do que nunca. Sufocada pela fumaça do quarto e por seus pensamentos agarrou uma das máquinas fotográficas descartáveis que havia comprado com Rafael na semana em que se conheceram no intuito de registrarem tudo para evitar que o tempo os levasse com ele, ideia de Rafael é claro, e saiu pela rua do jeito que estava, só com o brinquedo de plástico e um par de chaves no caso de querer retornar...

terça-feira, agosto 30, 2011

No ano dois mil.

Quando eu era criança adorava pensar em como seria quando chegasse o ano dois mil. Eu teria dezesseis anos! Seria grande e potente, estaria entrando na faculdade de onde sairia jornalista, como os meus pais, e casada, também como eles. Teria meu primeiro filho aos vinte e quatro, e o segundo aos vinte e oito, depois disso não sabia nem o que imaginar. Seria adulta. Totalmente adulta, significando isso , saber o que eu queria, quem eu era, ter um trabalho, dinheiro, família, casamento, uma carro grande para caber tudo isso, férias no final do ano. Seria alguém. Alguém grande e certa das coisas, alguém que não precisaria pedir permissão, que vestiria, comeria e andaria por onde bem entendesse. E não seria mais a segunda menina mais baixinha da turma nem usaria mais aqueles óculos cor de rosa.

Hoje, aos vinte e sete anos, sei que cresci, não sou grande, no que diz respeito a centímetros, tenho um metro e sessenta e um... e meio. Uma média bastante razoável, mas que faz de mim menor do que a maioria dos outros adultos e de algumas crianças super nutridas e adolescentes corpulentas, e com uma frequência maior do que gostaria, acabo sendo a segunda menor menina do grupo. Talvez se eu tivesse crescido mais um pouco me sentiria maior. Talvez não.

O ano dois mil chegou, eu completei os dezesseis anos, entrei na faculdade no ano seguinte, jornalismo, como a minha criança planejou. Não sei exatamente onde foi que tudo mudou, o que aconteceu quando o caminho ziguezagueou, não me lembro de ter pensado sobre isso, nem de ter feito qualquer tipo de escolha. Sei que aquele trem descarrilhou.

Lembro de um dia estar assistindo a uma peça, era uma mistura de teatro, circo e dança, era mágico e quis ficar ali para sempre. Acho que foi ali que alguma coisa rachou.

E como que num sopro virei atriz. Quem poderia imaginar, eu, tão séria, tão sólida, tentando ficar rarefeita, permeável, escolhendo como função um outro tipo de investigação, a busca do sentido do próprio sentido, como se isso fizesse algum sentido! A auto-fragmentação voluntária , o olhar de criança sendo levado como premissa para a vida adulta. Por quê? Não saberia responder. Sei que aconteceu o que eu não poderia prever.

Meu grande medo de quase adulta, talvez ali também pelo mesmo ano dois mil, era de um dia me acostumar, esquecer que era movida por algo que vinha de dentro e não de fora, me perder. Não queria me acomodar. Talvez tenha sido ai que a escolha tenha sido feita.

Hoje, aos vinte e sete anos, sei menos de mim do que aos sete, mas sinto que sei um pouco da vida. Pelo menos da ideia que se faz dela. Vivo o desconforto de não saber se fiz as escolhas certas. Por ter escolhido o caminho incerto e não ter vontade alguma de sair dele.

Não me casei, quer dizer, não daquele jeito com igreja e vestido branco, moro junto, pela segunda vez, a gente às vezes se chama de marido e mulher, mas sempre parece falso, uma brincadeira de crianças que brincam de casinha, tenho um carro pequeno, mas meu e dois gatos. Não sei quais são os meus sonhos, sei bem dos pesadelos. Tenho muita esperança e nenhuma calma. Sinto o tilintar dos ponteiros, eles me assustam, tenho medo de não me achar, e de se achar, não gostar do que posso encontrar. Tenho medo de mim mais do que dos outros. Tenho tanto pra procurar que dá medo de me afogar.

sexta-feira, junho 24, 2011

Devaneios sobre neblina

Parte 26.

Já era tarde e os pés de Manuela doíam, estava bom por hoje, era o que eles e a cabeça latejante pediam deseperadamente. Entrou em uma rua de pedras arredondadas à sua direita, era um corredor de restaurantes, lojinhas e pousadas. Foi se deixando guiar pelo suave cheiro de caldo de peixe que saía de um simpático restaurante no fundo de uma pousadinha com vista para o mar. A vantagem de quando há muito não se come é que o sentido avassalador da fome não permite que se pense em mais nada. Naquele momento, tudo o que Manuela queria era o bom caldo de peixe seguido por graúdos camarões grelhados e umas batatas, sabia disso, como era bom ter certezas.

No longo corredor que levava até o salão do restaurante centenas de porta-retratos enfeitavam as gastas paredes vermelhas contando a história de pelo menos três décadas passadas. Eram fotos festivas de jantares, almoços e passeios de barco pelas praias da região. A figura mais constate era de um homem forte e sorridente, às vezes mais jovem de cabelos castanhos quase ruivos e em outras já grisalho com o semblante mais cansado, mas sempre muito altivo e com os profundos olhos pretos bastante acordados como os de um maestro que posa ao lado dos integrantes da sua pequena orquestra particular. Muitas vezes estava no meio de famílias que não pareciam ser suas e de amigos, muitos, que haviam se tornado próximos ao longo dos anos de constante visitação.

No fim do corredor desvendou-se um amplo salão decorado com móveis antigos e aleatórios que davam uma cara de casa ao colorido e aconchegante salão de jantar. Foi recebida pelo dono do restaurante, o mesmo senhor das fotos, agora alguns anos mais velho, um estrangeiro de sotaque irreconhecível, falava português com uma mistura de castelhano e alemão, aparentava ter sessenta e poucos anos, ostentava cheios cabelos brancos e uma barba crescida da mesma cor, a pele era de um bronze avermelhado, daqueles das peles muito brancas que passaram a vida expostas ao sol dos trópicos e carregam um bronzeado resignado de uma pele que desistiu de sofrer.

Rico, sessenta e oito anos, cabelos brancos, um dia castanhos, barba cheia e branca, profundos olhos negros sempre muito interessados, austríaco. Formado em direito, começou a rodar o mundo sem destino certo no início da juventude, vive no Brasil onde abriu uma pousada para acolher quem vive de passagem. Sente muita saudade da filha.

Ainda era cedo para o jantar e o restaurante estava completamente vazio, mesmo assim, Rico, depois de um breve cumprimento, conduziu-a até uma pequena mesa para duas pessoas encostada na grande janela com vista para o mar no fundo do salão. Aproveite o pôr do sol enquanto trago o cardápio, é uma maravilha nessa época do ano. Disse isso com tamanha propriedade e doçura que deixou Manuela sem alternativa senão seguir suas ordens.

quarta-feira, junho 08, 2011

Devaneios sobre neblina

Parte 16.

Existe sempre uma quantidade maior do que o confortável de espaços vazios dentro de mim. Foi o que Manuela pensou naquela plácida manhã de outono enquanto esperava o 157 que a levaria ao jardim zoológico para o passeio fotográfico que armara para o início do dia.

Era domingo, o trânsito estava tranquilo, a cidade respirava calma aproveitando o descanso da correria da semana que passara. Estava sozinha, mas mesmo que estivesse rodeada por dezenas, centenas, até milhares de pessoas, aquela solidão não se aplacaria. Vinha de dentro, da quantidade excessiva de ar que parecia caber nas suas entranhas.

Comprou uma Coca-Cola normal do menino mulato de olhos azuis que vendia refrigerantes e balas em uma barraquinha improvisada ao lado do ponto de ônibus, brasileiro típico, com cara de cidadão de qualquer lugar ou de lugar nenhum, recebeu seu pedido com um sorriso tão largo e sincero daqueles que só quem optou por viver plenamente, sem grandes questionamentos pode dar. Era pobre, de dinheiro, não poderia se permitir nutrir ares dentro de si, precisava seguir, e seguia, com a certeza feliz de quem não teve muitas escolhas.

Sentiu inveja do menino, sabia que ela, com todo o seu ar, jamais experimentaria a vida como ele. Não se apaixonaria, comeria, transaria, dormiria, viveria e morreria como ele, plenamente, entregue, como quem não precisa lembrar de se preocupar com si, porque não se tem, ou o contrário, se pertence em estado bruto, porque nada mais tem, porque tem as vísceras repletas de sangue e não de ar, de espaços vazios.

Quis falar, mas entendeu ser inútil. Ele não entenderia, talvez até se ofendesse, achasse ruim. Seus amigos, Manuela pensou, certamente não entenderiam. Como poderia uma menina rica, bem educada, que teve as melhores oportunidades que se pode ter, dizer que, talvez, preferiria ser pobre, de dinheiro, de nascença, de possibilidades. Pareceria, aos olhos dos outros, alienada e frívola, talvez o fosse.

Mas queria a liberdade, só por um instante, de não precisar ser tanto. Na verdade gostaria de poder ser nada.

Sentiu-se culpada.

Afastou-se do menino com o olhar baixo, como quem pede desculpas. Foi quando viu o ônibus, antes vermelho, agora cinza, , parado no sinal do outro lado da rua.

sexta-feira, março 18, 2011

Devaneios sobre a neblina

Parte 10.


Saiu da cama o mais rápido que pode, cambalendo para longe da gritaria terrível que tomara conta do seu inconsciente naquela bela manhã de sexta-feira. Como poderiam fazer doer tanto as sombras de um desastre que nem mesmo acontecera? Aquelas pessoas nem ao menos existiam, mas Manuela dera um jeito de achar seus equivalentes na vida real e trazer sentido àquele sonho maldito. É impressionante como o real e o impalpável se separam por uma simples escolha.

Ela não queria trazer o sonho para a vida, mas as nossas escolhas nem sempre vivem em lugares muito acessíveis a nossa vontade.

Lavar o rosto, tomar uma xícara de café, vestir uma roupa e aproveitar a bela sexta de folga para ir ao banco, yoga, salão, visitar a irmã. Parecia um bom plano para aquele dia que começara tão rarefeito se tornar o mais comum dos dias normais.

A maquiagem mal tirada da noite anterior formava uma espécie de sombra esfumaçada sob os olhos que lhe dava ares bastante dramáticos, até demais para aquela bela manhã carioca. Desejou morar em Berlim, ser uma francesa moradora de Berlim, se não tivesse largado o vício há quase 4 meses esse seria o momento ideal para acender um cigarro e produzir um auto-retrato do qual seus amigos se orgulhariam bastante e causaria um certo frisson na abertura da sua exposição dali a três semanas, mas já não era fumante, a câmera estava quebrada e, na verdade, se importava cada vez menos com a já tão desgastada exposição de auto-retratos. Se contentou em lavar o rosto, deixando livre de qualquer pigmento e oleosidade a alva pele que, apesar de seus bravos esforços, se recusava a imprimir os anos que passavam. Manuela tinha uma cara de menina que abrigava seus profundos olhos de senhora. Uma imagem bastante obliqua, que não cansava de confundir os desavisados.

A temperatura na sala estava pelo menos uns quinze graus acima da produzida pelo aparelho de ar condicionado do quarto e a umidade relativa do ar faria a festa de qualquer velhinho com graves problemas respiratórios ou crianças asmáticas, o clima ideal diriam as pessoas felizes, mas ela achava essa história de felicidade uma bobagem, ou, pelo menos, uma coisa bastante relativa e imaginou a mesma paisagem ensolarada trinta graus abaixo. A pele foi ressecando, as bochechas e o nariz corando pelo tentativa desesperada do seu sistema sanguíneo de mantê-los vivos e pulsantes, as pontas dos dedos se anestesiando, uma alegria fria! Quando o chão do comprido cômodo de paredes âmbar teve seu cimento queimado totalmente coberto pela branca neve gelada e seu corpo já não aguentava mais suportar tão baixas temperaturas vestindo apenas uma calcinha e camiseta, era hora de fazer café.

Como em uma tentativa desesperada de manter a rotina, ou de esquecê-la, Manuela colocava todos os dias comida no pote de Michel-Gondry, o bulldog francês, lembrando minutos depois que o cachorro ficara no apartamento antigo, com Felipe, no dia que decidiu ir embora. Ele gentilmente sugeriu que eles dividissem o cachorro, levou até o novo apartamento, potinhos, coleira, ração, binquedinhos… Mas ela nunca foi buscá-lo, não sentia saudades o suficiente. Quando se larga toda uma vida dificilmente será do cachorro que se sentirá falta e, honestamente, não sentia falta de nada. Também não via sentido em manter em casa outro ser que demandasse manutenção constante além dela própria. Mas, que seria bastante reconfortante ver o cachorro correndo ao ouvir o tilintar da comida na vasilha ao invés de mais uma vez ter a súbita surpresa matinal de que não tinha mais cachorro, nem marido, nem trabalho, nem tristeza e que pouco se iportava com tudo aquilo, isso seria.

Talvez fosse esse o objetivo de Felipe ao aparecer naquele fim de tarde de domingo com os adereços caninos e aquela proposta amigável, talvez ele só quisesse provocar nela a mesma sensação de mutilação que a separação nele provocara, por mais que fosse em frações, pequenos instantes todos os dias em que ela se lembrasse que estava só. Amanhã jogaria todas aquelas porcarias fora, era uma decisão concreta.

Acabara o pó de café, optou por água com gás e ameixas secas, nada que comeria se tivesse uma larga escala de opções, mas parecia mais apropriado para o horário do que azeitonas ou o pacote de Doritos que eram vizinhos das frutas com cara de idosas na geladeira.

Felipe estava usando a camisa listrada e a calça de linho creme que ela tanto gostava. Estava certa, naquele dia ele estava vestido para Guerra, preparado com as roupas e o perfume com toques de madeira e algodão que era o que ela mais gostava. Não era tão inofensivo quanto parecia, intenções vis moravam atrás daquele sorriso quase infantil. Não falaria mais com o ex, era uma decisão importante, caso ele insistisse ela simplesmente sorriria e permaneceria calada, atitude neutra. Ele demoraria um tempo, mas acabaria desistindo, ficaria preocupado achando que finalmente ela estaria enlouquecendo, quem sabe assim, ele finalmente desse atenção para a dentista meio bonitinha, bastante educada e previsível que há anos suspirava toda vez que ele passava. Aliás, essa era uma boa estratégia para lidar com o mundo de uma forma geral. A partir do momento que você convence a todos que não tem mais juízo, eles param de te cobrar qualquer tipo de coerência e finalmente te deixam em paz. Era algo a se testar.

11:15 no relógio do micro-ondas, a manhã avançava lentamente. Colocou um short jeans, prendeu os cabelos em um coque alto e saiu para passear com o cachorro.

quarta-feira, novembro 24, 2010

Desabafo

Preciso interromper a sequência de devaneios e quebrar pela primeira vez a “quarta parede” que protege o que escrevo nesse espaço para fazer um desabafo.

Hoje acordei com um frio na espinha e um aperto no peito, não tinha nenhum motivo específico para me sentir assim, mas admito que casou muito bem com a sensação que tive ao levantar e ler as notícias na tela do computador.

A violência que assola a cidade do Rio de Janeiro não é nenhuma novidade. Convivo com sua presença e constante crescimento desde o dia em que nasci. Só que hoje bateu diferente. Não sei se porque dessa vez a violência chegou a porta da minha casa, por ter tido um amigo morto estupidamente ainda esse ano, ou, simplesmente, por estar mais velha e menos inconsequente. Sei que hoje as explosões, os assassinatos, os tiroteios, o desrespeito, a irresponsabilidade e o descaso me fizeram chorar.

Não tenho conhecimento político e sociológico suficiente para tentar desvendar de quem é a culpa e muito menos quais seriam tecnicamente as possibilidades reais de ação para enfrentarmos esse triste quadro. Sei, como todo carioca apaixonado pela cidade que sente o peito encher de alegria e canta mentalmente o samba do avião todas as vezes que está a poucos minutos de chegar ao Galeão, que apesar da beleza do pôr do sol no Arpoador, da delícia do café da manhã no Parque Lage e da descontração dos amigos no baixo Gávea, era claro que, mais cedo ou mais tarde, entre momentos de tempestade e calmaria, a bomba iria explodir, essa panela de pressão já está apitando há muitos anos. Faz tempo que os avisos estão pregados nas nossas caras e muito pouco foi feito, pois a violência e a miséria se escondiam no incrível e distante mundo das favelas e da baixada. Só que agora a violência “desceu o morro” e bateu na porta da classe média e dos ricos. Nossa situação atual, como já declarou nosso governador, Sérgio Cabral, é de guerra. Uma guerra que talvez pudesse ter sido evitada, talvez não. Mas que daqui pra frente dificilmente será ignorada.

E quanto a isso, por mais cruel que possa soar, não fico exatamente triste. Já era hora que toda essa sujeira explodisse para fora dos armários para que fossemos obrigados a encará-la de frente e aprender a lidar com a bagunça e com a nossa parcela de responsabilidade. É claro que a polícia carioca é uma das mais criminosas do mundo, que nossos políticos são ladrões e corruptos e que todo o sistema de governo está em acelerado processo de decadência. Mas, nada disso invalida a grande parcela de responsabilidade da sociedade civil, que ao contrário do que se ouve por aí, vai muito além do voto.

Quando falamos da nossa sociedade, da nossa cidade estamos falando das nossas vidas. Não existe bem estar pessoal sem o bem estar do grupo. Vivemos em sociedade, tudo o que fazemos em nosso único e exclusivo benefício, na maioria das vezes, prejudica o todo, logo, nos prejudica.

Enquanto estamos preocupados em consumir, em aparentar, em cuidar das nossas vidas, dos nossos apartamentos, carros e viagens pessoas estão sendo assassinadas na portas das suas casas, morrendo em filas de hospitais e crescendo sem nenhum tipo de perspectiva.

Talvez tenha chegado a hora de começarmos a repensar os nossos valores, nossos desejos. Não protegemos nossas crianças matriculando-as em escolas particulares e escondendo-as atrás das grades dos condomínios, assim estamos apenas evitando que elas tenham contato com uma realidade que já bate à porta.

O carro do ano e as roupas mais caras não nos libertam de sermos brasileiros, logo, pobres e ignorantes. Pertencemos a um todo que tem 16 milhões de analfabetos, e isso não mudará ao alfabetizarmos os nossos filhos e só.

De pouco adianta se cercar de cultura e riqueza dentro da sua própria casa se do lado de fora reina a violência e a miséria. Lembra das aulas de matemática do primário? Quando um grupo está contido no outro à ele pertence. E nossos pequenos e confortáveis oásis nadam no lamaçal da miséria.

Estamos tão preocupados com a manutenção dos nossos empregos, dos nossos hábitos, dos nossos desejos que esquecemos de pensar no sentido que tudo isso está trazendo para as nossas vidas.

Fomos cegados por uma sociedade que nos incentiva a consumir desenfreadamente, mesmo não tendo recursos para suprir esse consumo. E exatamente para o bem de quem? Tudo o que acreditamos precisar nos traz realmente felicidade? Ou foi o que nos foi dito que deveríamos querer para então alcançar a tal felicidade?

Acredito na total liberdade de ação, cada indivíduo deve empregar sua atenção e seu dinheiro naquilo que achar conveniente. Não tenho a ingenuidade de acreditar em movimentos socialistas em pleno ano de 2010. E mesmo se quisesse, a realista formação que me foi dada por uma mãe ex-presa política, que hoje é uma bem sucedida jornalista assalariada, não me permitiria. Mas, o olhar para o coletivo e o questionamento sobre os desejos de consumo propostos pelos movimentos podem muito bem serem levados em consideração. Assim com a responsabilidade individual em relação ao todo. Não podemos reclamar da violência se não tomamos nenhuma atitude concreta para combatê-la.

Já está mais do que na hora de pararmos de culpar fatores externos pela confusão que está se tornando a nossa sociedade e começarmos a encontrar dentro de nós as armas para combater aquilo que tanto desprezamos e cobramos que seja combatido por outros. O problema é de cada um de nós e só será sanado quando houver uma tomada geral de responsabilidade. De uma forma ou de outra, nós também estamos puxando esse gatilho.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Devaneios sobre neblina ou O dia que não acordei.

2.

Quando Manuela saiu da cama Felipe já estava de banho tomado, o cheiro de sabonete misturado ao do perfume do namorado causavam uma sensação agradável apesar de exagerada. “Bom dia, princesa. Preciso sair rápido para ver um apartamento que irá a leilão na quarta feira, pode ser um bom investimento, você me espera para o almoço?”- Foi o que ele disse enquanto abotoava a camisa de manga comprida de algodão branco que fazia com que parecesse ainda mais altivo e cheio de frescor. Ela sorriu com suavidade e disse que sim enquanto se acostumava com a claridade. Você pode aproveitar para levar o Gondry para passear, ou se preferir, vamos juntos quando eu voltar. Ele disse isso lhe dando um beijo carinhoso e saindo pela porta. Ela acenou que sim e mais uma vez sorriu.


Michel Gondry, oito meses, Bulldog francês de olhos expressivos e esbugalhados, todo branco com uma única mancha perfeitamente redonda e preta perto da cauda, gostava de dormir abraçado a uma galinha de borracha e de roer os pés da mesa de jantar.


Era tudo dela. O apartamento cuidadosamente decorado, o homem bonito e amável, o simpático cachorro... Como poderia então se sentir tão à deriva, tão sozinha e pertencente a coisa ou lugar nenhum? Para que algo te pertença não é necessário que você pertença a esse algo também? Não queria fazer julgamentos sobre si. Sabia que aos olhos dos outros e, talvez, até aos seus próprios, pareceria uma menina mimada, sentada no alto do seu castelo encantado sem conseguir achar graça em nenhum dos milhares de presentes que ganhava todos os dias. Talvez fosse mesmo apenas uma pirraça, uma rebeldia sem causa para colorir o mundo enfadonho que a cercava, que passaria assim que encontrasse uma novidade que enchesse seus olhos, mas a verdade, é que de qualquer maneira, essa novidade não aparecia e aquela vontade de nada convertera-se em pequenas explosões que agora a devoravam por dentro deixando nenhuma escapatória que não o movimento.


Em dois tempos tirou a camiseta listrada azul e branca, adorava essa combinação, e a calcinha de renda pérola e enfiou-se no chuveiro frio. Detestava banho frio, mas teve a sensação de que um pouco de desconforto seria bom para acordar os sentidos e obedeceu. A pressão da água gelada sobre as costas e cabeça faziam com que Manuela se sentisse em uma cachoeira, mas precisamente na cachoeira dos primatas, no horto florestal, perto da casa onde passara sua infância. Conseguia sentir o perfume tenro da terra molhada, da água limpa e de jaca partida que eram tão característicos. E a excitação, o medo alegre dos sagüis que tinham como brincadeira favorita atirar sementes e coco nas pessoas que invadiam sua mata. Se perdeu em seus pensamentos até sentir arder a pele já avermelhada pela baixa temperatura da água. Desistiu de xampus e condicionadores. Se enrolou na tolha branca e felpuda e sentou na cama ainda molhada, com pingos escorrendo dos agora ainda mais longos cabelos castanhos enquanto tentava controlar as pernas, braços e queixo que não paravam de tremer. Por uns instantes perdera-se na infância, nos sentimentos daquela que é pelo que foi e voltando a si, abandonou-se sob o edredom macio ainda embrulhada na fria toalha molhada.


...Continua.



quarta-feira, setembro 08, 2010

Devaneios sobre a neblina ou O dia que não acordei.

1.

Uma vontade imensurável de algo que não se sabe. Angústia? Não. Apatia? Não. Ansiedade? Também não. Algo mais concreto, uma necessidade física, quase palpável, um anseio por liberdade, mas não daquele tipo comum, nada relacionado a espaços ou pessoas. Um desejo pelo despojamento total de tudo o que se pensa e, principalmente, do que se sente.

Manuela acordara assim. Com uma vontade imensa sem corpo ou nome, que engolia tudo, destituindo de sentido até os gestos mais cotidianos como levantar da cama ou beber um copo de suco de laranja. Não é que lhe faltasse força, pelo contrário, disposição era o que não faltava, mas já não conseguia encontrar razão para ser ou querer. Provavelmente era algo grave, as coisas não deveriam simplesmente perder o sentido assim, de uma hora para outra. Não era coerente, mas de qualquer forma, quando não se vê mais sentido o que primeiro se perde é a coerência.

Manu, 26 anos, cabelos castanhos, olhos azuis vibrantes, fotógrafa e jornalista por formação, por hora desempregada, adora perfume de limão na comida, mas não tem total consciência disso, prefere dias nublados e sente muita saudade da mãe.

Fez as contas, fazia exatos dois anos, três meses e vinte e oito dias desde que ela e Felipe decidiram morar juntos . Levavam uma vida feliz, bastante feliz. Gostavam das mesmas músicas, riam das centenas de piadas particulares que criaram ao longo dos útlimos anos e falavam, como falavam, se pareciam e eram grandes companheiros, todos notavam.

Felipe, , 29 anos, moreno, cabelos lisos e curtos, barba sempre por fazer, arquiteto, uma paixão infantil por cavalos e lego, há dois anos procura o lustre perfeito para iluminar a mesa de jantar na sala, botafoguense.

Era feriado, sete de setembro, dia da independência do Brasil, um dia engraçado, quase uma piada, isso já seria motivo para uma boa conversa matinal, falariam sobre o país, sobre as sequelas da nossa mambembe colonização, sobre o projeto de alfabetização social onde Manu era voluntária durante a faculdade, sobre a época que Felipe morara na Suíça e as maravilhas de se viver em uma sociedade civilizada, emendariam nos questionamentos sobre a falta de noção de limite da sua geração, beberiam café da nova máquina de café expresso que ganharam de presente de Ricardo, pai de Felipe, e terminariam jogados na sala enquanto ele leria a coluna de esportes e ela organizaria a coleção de CDs cultivada desde a pré adolescência.

Ricardo, 63 anos, cabelos cacheados e grisalhos precisando de corte, barba muito bem feita, predileção por camisas azuis, matemático pós doutorado, morador convicto de Santa Tereza, apaixonado por Carlos Gardel e pelas estrelas.

Mas, naquele dia não. Aquela conversa já não faria sentido, nem o café, nem os CDs e menos ainda Felipe. Diante daquela vontade imensa de algo que não se sabia, mas que a tudo se sobrepunha, tudo o que existira até então parecia pequeno, indigno de atenção diante da grandiosidade dos não acontecimentos.

... Continua.

segunda-feira, agosto 02, 2010

Um silêncio enorme.

Onze dias, ela tinha contado. Onze dias desde que envelhecera um pouco de vida.

Passado o choque, ela se viu ali, parada, olhando de fora a dor que lhe roubara pedaços dos sonhos. Não de sonhos concretos, desses dos quais se quer alguma coisa. Mas, daqueles que nos fazem seguir, andar olhando pra frente, sem pestanejar.

Era o final de um domingo bonito, agradável. Esses dias ensolarados de inverno no Rio de janeiro, onde o sol é carinhoso, a brisa suave e as cores e sombras fazem a fotografia do filme mais bem cuidado parecer brincadeira de estudante.

Mas, algo parecia fora do lugar: O dissipar da tristeza. Um movimento natural e ao mesmo tempo incoerente. A vida que seguia a enchia de uma melancolia doce, de uma certeza de que crescer tinha mais a ver com encontrar fé no improvável do que com aprender a caminhar.

Não existia a menor possibilidade de se acostumar com a dureza dos fatos, com a certeza de que apesar da grandiosidade dos acontecimentos, o mundo não pararia. Tudo seguiria igual. Os carros, os faróis de trânsito, as crianças nas escolas, as conversas nos bares, as fábricas, os sons, as cores... Tudo seguiria igual, naquele mundo diferente.

Ela queria saber palavras que dessem sentido a todo esse circo de carne, ar e concreto. Mas, as palavras, não vinham.

As imagens, lindas, que a cercavam por todos os lados, pareciam nada além de uma grande folha de papel em branco. Imagens vazias de sentido, mas repletas de sentimento, inundadas pela vida que corre, vivida.

Ilusão partida da vida que segue.

terça-feira, maio 04, 2010

Desculpe a incoerência.

Ela não sabia onde estavam seus pés, pernas ou braços.

Seu corpo já não era mais nada além de uma imensa massa de ar seco, que estufava suas veias e roubava-lhe a vida.

Tinha esquecido de si, dos seus porquês, de sua força.

Não sentia mais fome, sede, pavor, só sobrava o nada.

E a imagem daqueles olhos... Que lançavam todo o frio, a raiva e a dor que a matavam aos poucos, mutilando seus sonhos como o pior dos carrascos de um feio filme medieval.

Até aqui, ela sabia-se forte, e agora, não era nada. Nada além daquele monte de ar e galhos tortos e secos.

O inverno chegara mais cedo do que o anunciado. Sufocando o perfume do outono, de suas damas da noite, trazendo só a umidade viscosa da terra molhada.

No lugar da esperança da brisa macia e das cores suaves fez-se a maior das nevascas.

E agora ela está alí, imóvel, imersa no frio, nas cinzas de um mundo de água salgada.

segunda-feira, abril 26, 2010

O avesso do avesso

Hoje sonhei que virava um rio.
Foi um sonho acordado, daqueles mais claros que toda lucidez possível.
De quando sonhamos o que somos quando vazamos tudo o que fomos um dia.


Hoje sonhei que era um rio.
E minha água não eram clara nem turva, nem fria ou quente.
Mas, macia... e doce. Como um corpo sem lágrimas.


Hoje sonhei que era rio.
Um rio sem margem. Seguindo o infinito sem ser nunca tocada.


Hoje, sonhei acordada. Sonhei ser um rio, sonhei que era nada.

terça-feira, abril 13, 2010

A raiz quadrada de 37

Eles pareciam saídos de um filme inglês do final dos anos 90, mas era apenas uma noite qualquer no Pão de Açúcar da rua jardim botânico. Se esbarraram no corredor de bebidas. Ela procurava café, ele qualquer coisa mais forte. Ela, a cada passo, colocava algo que não precisava na cestinha de plástico azul, sem lembrar que teria que carregar toda aquela tralha ladeira acima, ele não conseguia escolher.


Ele sabia que ela tinha um gato, pela areia, e era um pouco antiquada, pelas botas de cowboy. Ela viu que ele era fã dos Ramones, estava escrito na camiseta.


Ela amava o outono, Ele queria desaparecer.


Eles nunca tinham se visto antes e nem se veriam depois, ou, em caso contrário, não se lembrariam. Mas, naquele momento estavam ali, as únicas duas pessoas fazendo compras em um supermercado situado a 22º 54' e 23'' de latitude sul e 43º 10' e 21'' de longitude oeste , às 22:49 de uma segunda-feira de Abril, e isso já era o suficiente.


Ela estava se apaixonando por alguém que acabara de chegar, ele estava se dilacerando por alguém que acabara de partir. Ela ouvia "Closing time" e andava como em um videoclipe adolescente, ele não sabia o que fazer com as mãos.



Se encontraram na saída dos caixas, ela levando muitas sacolas com produtos desconexos, ele uma garrafa de Coca e um pacote de Trakinas sabor morango.



Ele queria saber qual era a música que ela colocava para tocar de novo e de novo, ela não parava de trocar as sacolas de braço. Ele se arrependeu por não ter trocado de roupa, ela balançava a cabeça ao som dos fones de ouvido. Ele tentava se aproximar a cada passo para oferecer ajuda com as sacolas, ela cantava a música baixinho. Ele começou a gostar do jeito que ela pisava os calcanhares com mais força do que o resto dos pés e quis andar atrás dela para sempre, ela sentiu o cheiro de dama da noite e apertou os olhos.



Ele daria o mundo para não precisar voltar para casa, Ela estava cansada.



Ele olhou para ela, ela olhou para ele. Ele abaixou a cabeça, ela sorriu.